Primeira leitura: Is 50,4-7:
Não desviei meu rosto das bofetadas e cusparadas; sei que não serei humilhado.
Salmo: Sl 21,8-9.17-18a.19-20.23-24 (R.2a):
R. Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?
Segunda leitura: Fl 2,6-11:
Humilhou-se a si mesmo; por isso, Deus o exaltou acima de tudo.
Evangelio: Lc 22,14-23,56:
Desejei ardentemente comer convosco esta ceia pascal, antes de sofrer.
Tema: DOMINGO DE RAMOS DA PAIXÃO DO SENHOR
Quando chegou a hora, Jesus pôs-se à mesa com os apóstolos e disse: 'Desejei ardentemente comer convosco esta ceia pascal, antes de sofrer. Pois eu vos digo que nunca mais a comerei, até que ela se realize no Reino de Deus'. Então Jesus tomou um cálice, deu graças e disse: 'Tomai este cálice e reparti entre vós; pois eu vos digo que, de agora em diante, não mais bebereis do fruto da videira, até que venha o Reino de Deus'. Fazei isto em memória de mim. A seguir, Jesus tomou um pão, deu graças, partiu-o e deu-o aos discípulos, dizendo: 'Isto é o meu corpo, que é dado por vós. Fazei isto em memória de mim'. Depois da ceia, Jesus fez o mesmo com o cálice, dizendo: 'Este cálice é a nova aliança no meu sangue, que é derramado por vós'. Mas ai daquele por meio de quem o Filho do Homem é entregue. 'Todavia, a mão de quem me vai entregar está comigo, nesta mesa. Sim, o Filho do Homem vai morrer, como está determinado. Mas ai daquele homem por meio de quem ele é entregue.' Então os apóstolos começaram a perguntar uns aos outros qual deles haveria de fazer tal coisa. Eu, porém, estou no meio de vós como aquele que serve. Houve também uma discussão entre eles sobre qual deles deveria ser considerado o maior. Jesus, porém, lhes disse: 'Os reis das nações dominam sobre elas, e os que têm poder se fazem chamar benfeitores. Entre vós, não deve ser assim. Pelo contrário, o maior entre vós seja como o mais novo, e o que manda, como quem está servindo. Afinal, quem é o maior: quem está sentado à mesa, ou quem está servindo? Não é quem está sentado à mesa? Eu, porém, estou no meio de vós como aquele que serve. Vós ficastes comigo em minhas provações. Por isso, assim como o meu Pai me confiou o Reino, eu também vos confio o Reino. Vós havereis de comer e beber à minha mesa no meu Reino, e sentar-vos em tronos para julgar as doze tribos de Israel. Tu, uma vez convertido, fortalece os teus irmãos. Simão, Simão! Olha que Satanás pediu permissão para vos peneirar como trigo. Eu, porém, rezei por ti, para que tua fé não se apague. E tu, uma vez convertido, fortalece os teus irmãos.' Mas Simão disse: 'Senhor, eu estou pronto para ir contigo até mesmo à prisão e à morte!' Jesus, porém, respondeu: 'Pedro, eu te digo que hoje, antes que o galo cante, três vezes tu negarás que me conheces.' É preciso que se cumpra em mim a palavra da Escritura. E Jesus lhes perguntou: 'Quando vos enviei sem bolsa, sem sacola, sem sandálias, faltou-vos alguma coisa?' Eles responderam: 'Nada.' Jesus continuou: 'Agora, porém, quem tiver bolsa, deve pegá-la; do mesmo modo, quem tiver uma sacola; e quem não tiver espada, venda o manto para comprar uma. Porque eu vos digo: É preciso que se cumpra em mim a palavra da Escritura: 'Ele foi contado entre os malfeitores'. Pois o que foi dito a meu respeito tem de se realizar.' Mas eles disseram: 'Senhor, aqui estão duas espadas.' Jesus respondeu: 'Basta.' Tomado de angústia, Jesus rezava com mais insistência. Jesus saiu e, como de costume, foi para o monte das Oliveiras. Os discípulos o acompanharam. Chegando ao lugar, Jesus lhes disse: 'Orai para não entrardes em tentação.' Então afastou-se a uma certa distância e, de joelhos, começou a rezar: 'Pai, se queres, afasta de mim este cálice; contudo, não seja feita a minha vontade, mas a tua!' Apareceu-lhe um anjo do céu, que o confortava. Tomado de angústia, Jesus rezava com mais insistência. Seu suor tornou-se como gotas de sangue que caíam no chão. Levantando-se da oração, Jesus foi para junto dos discípulos e encontrou-os dormindo, de tanta tristeza. E perguntou-lhes: 'Por que estais dormindo? Levantai-vos e orai para não entrardes em tentação.' Judas, com um beijo tu entregas o Filho do Homem? Jesus ainda falava, quando chegou uma multidão. Na frente, vinha um dos Doze, chamado Judas, que se aproximou de Jesus para beijá-lo. Jesus lhe disse: 'Judas, com um beijo tu entregas o Filho do Homem?' Vendo o que ia acontecer, os que estavam com Jesus disseram: 'Senhor, vamos atacá-los com a espada?' E um deles feriu o empregado do Sumo Sacerdote, cortando-lhe a orelha direita. Jesus, porém, ordenou: 'Deixai, basta!' E tocando a orelha do homem, o curou. Depois Jesus disse aos sumos sacerdotes, aos chefes dos guardas do templo e aos anciãos, que tinham vindo prendê-lo: 'Vós saístes com espadas e paus, como se eu fosse um ladrão? Todos os dias eu estava convosco no templo, e nunca levantastes a mão contra mim. Mas esta é a vossa hora, a hora do poder das trevas.' Pedro saiu para fora e chorou amargamente. Eles prenderam Jesus e o levaram, conduzindo-o à casa do Sumo Sacerdote. Pedro acompanhava de longe. Eles acenderam uma fogueira no meio do pátio e sentaram-se ao redor. Pedro sentou-se no meio deles. Ora, uma criada viu Pedro sentado perto do fogo; encarou-o bem e disse: 'Este aqui também estava com ele!' Mas Pedro negou: 'Mulher, eu nem o conheço!' Pouco depois, um outro viu Pedro e disse: 'Tu também és um deles.' Mas Pedro respondeu: 'Homem, não sou.' Passou mais ou menos uma hora, e um outro insistia: 'Certamente, este aqui também estava com ele, porque é galileu!' Mas Pedro respondeu: 'Homem, não sei o que estás dizendo!' Nesse momento, enquanto Pedro ainda falava, um galo cantou. Então o Senhor se voltou e olhou para Pedro. E Pedro lembrou-se da palavra que o Senhor lhe tinha dito: 'Hoje, antes que o galo cante, três vezes me negarás.' Então Pedro saiu para fora e chorou amargamente. Profetiza quem foi que te bateu? Os guardas caçoavam de Jesus e espancavam-no; cobriam o seu rosto e lhe diziam: 'Profetiza quem foi que te bateu?' E o insultavam de muitos outros modos. Levaram Jesus ao tribunal deles. Ao amanhecer, os anciãos do povo, os sumos sacerdotes e os mestres da Lei reuniram-se em conselho e levaram Jesus ao tribunal deles. E diziam: 'Se és o Cristo, dize-nos!' Jesus respondeu: 'Se eu vos disser, não me acreditareis, e, se eu vos fizer perguntas, não me respondereis. Mas, de agora em diante, o Filho do Homem estará sentado à direita do Deus Poderoso.' Então todos perguntaram: 'Tu és, portanto, o Filho de Deus?' Jesus respondeu: 'Vós mesmos estais dizendo que eu sou!' Eles disseram: 'Será que ainda precisamos de testemunhas? Nós mesmos o ouvimos de sua própria boca!' Em seguida, toda a multidão se levantou e levou Jesus a Pilatos. Não encontro neste homem nenhum crime. Começaram então a acusá-lo, dizendo: 'Achamos este homem fazendo subversão entre o nosso povo, proibindo pagar impostos a César e afirmando ser ele mesmo Cristo, o Rei.' Pilatos o interrogou: 'Tu és o rei dos judeus?' Jesus respondeu, declarando: 'Tu o dizes!' Então Pilatos disse aos sumos sacerdotes e à multidão: 'Não encontro neste homem nenhum crime.' Eles, porém, insistiam: 'Ele agita o povo, ensinando por toda a Judeia, desde a Galileia, onde começou, até aqui.' Quando ouviu isto, Pilatos perguntou: 'Este homem é galileu?' Ao saber que Jesus estava sob a autoridade de Herodes, Pilatos enviou-o a este, pois também Herodes estava em Jerusalém naqueles dias. Herodes, com seus soldados, tratou Jesus com desprezo. Herodes ficou muito contente ao ver Jesus, pois havia muito tempo desejava vê-lo. Já ouvira falar a seu respeito e esperava vê-lo fazer algum milagre. Ele interrogou-o com muitas perguntas. Jesus, porém, nada lhe respondeu. Os sumos sacerdotes e os mestres da Lei estavam presentes e o acusavam com insistência. Herodes, com seus soldados, tratou Jesus com desprezo, zombou dele, vestiu-o com uma roupa vistosa e mandou-o de volta a Pilatos. Naquele dia Herodes e Pilatos ficaram amigos um do outro, pois antes eram inimigos. Pilatos entregou Jesus à vontade deles. Então Pilatos convocou os sumos sacerdotes, os chefes e o povo, e lhes disse: 'Vós me trouxestes este homem como se fosse um agitador do povo. Pois bem! Já o interroguei diante de vós e não encontrei nele nenhum dos crimes de que o acusais; nem Herodes, pois o mandou de volta para nós. Como podeis ver, ele nada fez para merecer a morte. Portanto, vou castigá-lo e o soltarei. Toda a multidão começou a gritar: 'Fora com ele! Solta-nos Barrabás!' Barrabás tinha sido preso por causa de uma revolta na cidade e por homicídio. Pilatos falou outra vez à multidão, pois queria libertar Jesus. Mas eles gritavam: 'Crucifica-o! Crucifica-o!' E Pilatos falou pela terceira vez: 'Que mal fez este homem? Não encontrei nele nenhum crime que mereça a morte. Portanto, vou castigá-lo e o soltarei.' Eles, porém, continuaram a gritar com toda a força, pedindo que fosse crucificado. E a gritaria deles aumentava sempre mais. Então Pilatos decidiu que fosse feito o que eles pediam. Soltou o homem que eles queriam - aquele que fora preso por revolta e homicídio - e entregou Jesus à vontade deles. Filhas de Jerusalém, não choreis por mim! Enquanto levavam Jesus, pegaram um certo Simão, de Cirene, que voltava do campo, e impuseram-lhe a cruz para carregá-la atrás de Jesus. Seguia-o uma grande multidão do povo e de mulheres que batiam no peito e choravam por ele. Jesus, porém, voltou-se e disse: 'Filhas de Jerusalém, não choreis por mim! Chorai por vós mesmas e por vossos filhos! Porque dias virão em que se dirá: 'Felizes as mulheres que nunca tiveram filhos, os ventres que nunca deram à luz e os seios que nunca amamentaram'. Então começarão a pedir às montanhas: 'Caí sobre nós! e às colinas: 'Escondei-nos!' Porque, se fazem assim com a árvore verde, o que não farão com a árvore seca?' Levavam também outros dois malfeitores para serem mortos junto com Jesus. Pai, perdoa-lhes! Eles não sabem o que fazem! Quando chegaram ao lugar chamado 'Calvário', ali crucificaram Jesus e os malfeitores: um à sua direita e outro à sua esquerda. Jesus dizia: 'Pai, perdoa-lhes! Eles não sabem o que fazem!' Depois fizeram um sorteio, repartindo entre si as roupas de Jesus. Este é o Rei dos Judeus. O povo permanecia lá, olhando. E até os chefes zombavam, dizendo: 'A outros ele salvou. Salve-se a si mesmo, se, de fato, é o Cristo de Deus, o Escolhido!' Os soldados também caçoavam dele; aproximavam-se, ofereciam-lhe vinagre, e diziam: 'Se és o rei dos judeus, salva-te a ti mesmo!' Acima dele havia um letreiro: 'Este é o Rei dos Judeus.' Hoje estarás comigo no Paraíso. Um dos malfeitores crucificados o insultava, dizendo: 'Tu não és o Cristo? Salva-te a ti mesmo e a nós!' Mas o outro o repreendeu, dizendo: 'Nem sequer temes a Deus, tu que sofres a mesma condenação? Para nós, é justo, porque estamos recebendo o que merecemos; mas ele não fez nada de mal.' E acrescentou: 'Jesus, lembra-te de mim, quando entrares no teu reinado.' Jesus lhe respondeu: 'Em verdade eu te digo: ainda hoje estarás comigo no Paraíso.' Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito. Já era mais ou menos meio-dia e uma escuridão cobriu toda a terra até às três horas da tarde, pois o sol parou de brilhar. A cortina do santuário rasgou-se pelo meio, e Jesus deu um forte grito: 'Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito.' Dizendo isso, expirou. Aqui todos se ajoelham e faz-se uma pausa. O oficial do exército romano viu o que acontecera e glorificou a Deus dizendo: 'De fato! Este homem era justo!' E as multidões, que tinham acorrido para assistir, viram o que havia acontecido, e voltaram para casa, batendo no peito. Todos os conhecidos de Jesus, bem como as mulheres que o acompanhavam desde a Galileia, ficaram à distância, olhando essas coisas. José colocou o corpo de Jesus num túmulo escavado na rocha. Havia um homem bom e justo, chamado José, membro do Conselho, o qual não tinha aprovado a decisão nem a ação dos outros membros. Ele era de Arimateia, uma cidade da Judeia, e esperava a vinda do Reino de Deus. José foi ter com Pilatos e pediu o corpo de Jesus. Desceu o corpo da cruz, enrolou-o num lençol e colocou-o num túmulo escavado na rocha, onde ninguém ainda tinha sido sepultado. Era o dia da preparação da Páscoa, e o sábado já estava começando. As mulheres, que tinham vindo da Galileia com Jesus, foram com José, para ver o túmulo e como o corpo de Jesus ali fora colocado. Depois voltaram para casa e prepararam perfumes e bálsamos. E, no sábado, elas descansaram, conforme ordenava a Lei.
Comentário
O tema central das leituras do Domingo de Ramos, como se pode ver, é o do Messianismo. Este tem várias etapas na Bíblia. «Messias» é uma palavra hebraica, que significa «ungido», e que em grego se diz «xristós». Claro, a importância de ungir alguém era para dar a uma pessoa o mandato de ir, era enviado com poderes, era-lhe dada uma missão. Por isso, as palavras Messias e Xristós, que significam o Ungido, referem-se àquele personagem que o povo de Israel esperava, um líder carismático descendente de Davi que haveria de instaurar definitivamente na terra «o direito e a justiça».
No Primeiro Testamento Isaías é o profeta que mais profetiza e anuncia a chegada do Messias de Deus, messias que ele entende como o Servo de Javé que chega. O Messias é para o profeta a grande realidade de Deus vivendo conosco, a realidade do grande restaurador que liberta da escravidão, da grande violência (violência estrutural diríamos hoje), da grande miséria (pobreza extrema e massiva diríamos atualmente) à que foi condenado o povo de Deus (os muitos povos de Deus). O Messias, em sua qualidade de Ungido de Javé, não é senão seu enviado, seu representante, o encarregado de promulgar seus desígnios.
A ideia do Messias e dos tempos messiânicos estava fundada na esperança de que Deus cumprisse plenamente as promessas feitas ao povo escolhido, à nação que acreditava ser ela mesma a escolhida de Deus. A chegada do «Messias» é a instauração do reinado de Deus na história e no tempo, e é ali onde, segundo a concepção judaica (segundo, pois, um pensamento muito humano, não segundo uma revelação divina), Israel se vingaria dos «pagãos» (a maior parte deles tão religiosos como os próprios israelitas), dos não judeus.
A ideia messiânica do Primeiro Testamento está baseada na força político-militar de um enviado do Deus de Israel para dominar todas as nações da terra e fazer que Israel se converta numa nação forte e poderosa capaz de submeter a todos os povos que não têm a Javé por seu Deus. Como se vê, um messianismo muito humanamente compreensível...
O Messianismo é uma das heranças que o Segundo Testamento recebe da tradição veterotestamentária. No tempo do Novo Testamento, sendo o mundo governado então por Roma com toda sua força, riqueza e pretensões, também há grupos majoritários que esperam a chegada definitiva de um Messias que os libertará do domínio explorador romano. Todos esperavam então a intervenção de Deus na história através de um líder que fosse capaz de derrubar o poder imperial e fazer de Jerusalém a grande capital de Israel.
No ano C da liturgia lemos o relato da Paixão do Senhor segundo Lucas. Consideremos as características teológicas que este relato nos apresenta.
Lucas, como se sabe, é considerado o evangelista da misericórdia, ou, o que é a mesma coisa, como o evangelista do amor infinito de Deus que se manifestou em Jesus Cristo. Nenhum dos evangelistas como ele percebeu a sensibilidade do amor do Pai, que se deixa sentir de maneira especial entre os pobres, entre os que sofrem, entre os marginalizados. Não é difícil constatar no evangelho de Lucas a preocupação de Jesus pelos fracos, as viúvas, os órfãos, as mulheres, os pecadores...
Este mesmo interesse se manifesta na narrativa dos acontecimentos da Paixão do Senhor. Em primeiro lugar, porque todo este relato está sustentado por um conhecimento da alma de Jesus, cuja intimidade nos é desvelada pelo evangelista quando nos deixa ver sua estreita relação com o Abba misericordioso, nos momentos de oração (Lc 22,42); ou quando seu Pai lhe dá valor no meio do sofrimento (Lc 22,43).
Em segundo lugar, a cruz aparece neste relato da Paixão como um verdadeiro sacramento do amor divino: a revelação da misericórdia no meio do sofrimento. Lucas não põe a atenção nos aspectos negativos e cruéis desta situação. Em sua narrativa são omitidas recordações ou referências que aparecem nos outros evangelistas como a flagelação ou a coroação de espinhos que servem para culpabilizar os que levaram Jesus à morte. Lucas nos quer fazer descobrir o amor do Pai por seu Filho e para todos os seres humanos, mesmo nesta situação de tanta dor. Jesus não aparece abandonado no Calvário (não se cita a Zc 13,6 sobre a dispersão do rebanho): está acompanhado de amigos e conhecidos (Lc 23,49 em contraposição com Mt 27,55-56 e Mc 15,40-41). E substitui o grito do Salmo 21 (22) citado por Mateus pela manifestação ilimitada de confiança do Salmo 30,6 (31,6): “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito”.
À luz de tudo isto é compreensível o papel que desempenha neste relato da Paixão a atitude do perdão, somente explicável desde o mistério da misericórdia. Em suma, todo o mundo fica limpo e se insiste em fatos positivos, somente explicáveis a partir da virtude reconciliadora do sofrimento de Jesus ou desde sua atitude de perdão: o caso de Pilatos (Lc 23,4.13-15.20-22); o do agressor a quem Pedro cortou uma orelha e que é curado por Jesus (Lc 22,51); o de Pedro (Lc 22,61); o de todos os judeus (Lc 23,34); o do bom ladrão (Lc 23,39-43); o do centurião (Lc 23,47); o da reconciliação entre Herodes e Pilatos (Lc 23,6-12).
Jesus aparece claramente como o inocente, o justo perseguido. Mesmo no processo dos romanos, Pilatos proclama a inocência de Jesus. O centurião também reconhece sua inocência.
Somente em Lucas Jesus se dirige com palavras consoladoras às mulheres que de longe o seguem. Realmente, Lucas foi chamado o evangelho das mulheres e da misericórdia com os mais pobres e ignorados, e as mulheres fazem parte da classe marginalizada em Israel. Porém para Jesus, em todo o evangelho de Lucas, as mulheres fazem parte do discipulado e merecem um trato respeitoso. Agora, a caminho do Calvário, a fidelidade das mulheres a seu mestre é reconhecida pelo Senhor.
A Paixão e a morte de Jesus são uma verdadeira revelação: a manifestação da misericórdia do Pai. Apenas quem compreendeu uma atitude tão comovedora, como a que nos traz este evangelho na parábola do pai misericordioso, poderá entender porque o evangelista contemplou assim o mistério do sofrimento e da morte de Jesus.
Lucas concebeu o relato da Paixão como uma contemplação de Jesus. Por isso este relato é um convite ao leitor-ouvinte a aproximar-se de Jesus, a segui-lo, a carregar com ele a cruz de cada dia (9,23). Na palavra que dirige desde a cruz ao bom ladrão arrependido, esse ‘hoje’ nos remete a Lc 4,21 quando na sinagoga de Nazaré, Jesus declara que “hoje se cumpriu” a passagem de Is 61,1-2 que acabava de ler. O tempo se cumpriu e ele, que veio para anunciar a liberdade aos cativos e a vista aos cegos, para por em liberdade os oprimidos e para proclamar o ano da graça do Senhor cumpriu sua missão, porque vai morrer pregado na cruz, mas continuará vivendo no meio de nós.
Nota para leitores críticos
O evangelho de hoje é mais longo que de costume, compreende toda a Paixão de Jesus, e por isso muitas homilias hoje serão mais breves. Também na sexta-feira santa se lerá a Paixão, segundo São João. E durante toda a semana, a Semana Santa, o pano de fundo litúrgico-espiritual é esse: a paixão e morte de Jesus. É, pois, um momento apropriado para apresentar alguns critérios críticos sobre a interpretação da paixão de Jesus em seu significado de conjunto.
Se somos cristãos, e se o cristianismo professa a convicção da significação salvadora de Jesus, precisamos ter um «modelo soteriológico» («sotería» = salvação), ou seja, uma explicação do que é isso, e como se entende isso que dizemos de que Jesus salva a humanidade. É claro que isto é o coração da fé cristã.
Pois bem, na história houve vários «modelos soteriológicos».
O modelo que chegou até nós é, fundamentalmente, aquele que no século XI Santo Anselmo de Cantuária (nascido italiano) elaborou sobre a tradição jurídica do direito romano no sentido seguinte: O ser humano ofendeu a Deus com o pecado original, e com isso se romperam as relações de Deus com a humanidade. Deus foi ofendido em sua dignidade, e o ser humano ficou privado da graça da relação com Deus e não tinha capacidade para superar esta situação, pois embora houvesse ofendido a Deus, não tinha capacidade para reparar uma ofensa de caráter infinito. Em sua obra Cur Deus homo? (Por que Deus se fez homem?) Anselmo elabora a teoria da «satisfação penal substitutiva»: Jesus morre no lugar da humanidade pecadora culpável, para satisfazer com sua paixão e morte a dignidade ofendida de Deus, restabelecendo assim as relações de Deus com a humanidade.
Por uma parte, deve-se notar que esta explicação, que chegou a nós todos numa tradição tão longeva, não deixa de ser «uma» explicação, a do século XI em concreto; ou seja: não é «a» explicação, não é a única. Mais importante ainda: não está no Novo Testamento, é uma elaboração teológica muito posterior, que assume as categorias e a lógica do direito romano «recepcionado» no mundo feudal europeu da alta Idade Média; ou seja, foi pensada dentro do contexto mental do direito inapelável e absoluto dos senhores, a sujeição natural dos servos, as obrigações jurídicas (do direito romano) relativas à ofensa e à satisfação ou reparação. É a teologia da «redenção», do redimir, «re-d-emere», «re-comprar» o escravo para libertá-lo de seu antigo dono.
Esta teologia, atualmente insustentável, é, entretanto, a que a maioria dos cristãos e cristãs, incluindo a muitos agentes de pastoral, tem ainda hoje em sua consciência, em sua compreensão do cristianismo, ou em seu subconsciente pelo menos. E é para muitos deles «a» explicação maior do mistério cristão, o mistério da «Redenção».
Deve-se recordar que os modelos soteriológicos, como todo o resto da teologia, não deixam de ser uma linguagem metafórica, e que a metáfora nunca deve ser tomada ao pé da letra, tanto seja num sentido direto como num sentido metafísico, sobretudo no segundo termo ao qual translada o sentido (“meta-fora” = mudança, translado de sentido). As teologias e os modelos soteriológicos se apoiam sobre as lógicas e os símbolos das culturas nas quais são criados. Por isso, quando a evolução cultural muda de lógica e de símbolos, esses modelos soteriológicos, e em geral, essas teologias, aparecem crescentemente desfasadas, se fazem até ininteligíveis, e finalmente, ficam obsoletas. A visão de Deus como «Senhor» feudal irritado por uma ofensa do primeiro casal humano... e para acalmá-lo teria sido necessária a reparação da ofensa por meio da morte cruel e sangrenta de seu Filho, é uma imagem de Deus hoje simplesmente insustentável, e inaceitável. A única ideia de um mítico pecado de Adão e Eva teria torcido os planos de Deus, e teria sumido nas trevas do pecado e do afastamento de Deus toda a humanidade desde o primeiro casal, durante milhares e milhares de anos –hoje a ciência nos diz que teriam sido milhões de anos -, até a chegada de Jesus, é absolutamente inaceitável para a mentalidade atual. A mesma fórmula jurídica da «satisfação substitutiva» acaba sendo hoje inviável desde os mínimos éticos de nossa época. Um Deus assim não merece crédito, provoca ateísmo, com razão.
Se este modelo hoje nos parece ultrapassado, não devemos deixar de considerar que houve outros modelos ainda mais inadequados. No primeiro milênio a teologia dominante, com efeito, não foi a da «satisfação substitutiva», mas a do «resgate»: pelo pecado de Adão a humanidade havia ficado «prisioneira do demônio», literalmente sob o seu poder. Segundo Santo Irineu de Lyon (+ 202) e Orígenes (+ 254) o Diabo teria um «direito» sobre a humanidade, por causa do pecado de Adão. Juridicamente a humanidade estava sob seu domínio, «lhe pertencia», e Deus «quis agir com justiça inclusive frente ao Diabo» (Irineu, Adversus Haereses, V, 1,1), ao anular tal direito pagando um resgate adequado. Para isso, entregou o seu Filho à morte, a fim de libertar a humanidade do domínio «legítimo» do Diabo. Santo Agostinho explicita ainda melhor: Deus decretou «vencer do Diabo não através do poder, mas através da justiça » (De Trinitate XIII, 17 e 18).
Este modelo do «resgate pago ao Diabo» para resgatar a humanidade, ainda ressoa nas pessoas que tiveram uma formação cristã. Hoje, porém, isso nos resulta inaceitável, até inimaginável, e até grotesco: não podemos aceitar um Diabo, concebido como um contra-poder quase-divino, que está posicionada diante de Deus e que retém a humanidade sob o seu poder, durante milênios, até que é «justamente ressarcido» por Deus, nada menos que com a morte do Filho de Deus, um Diabo que somente assim seria «derrotado pela vitória de Cristo»...
O que queremos dizer com tudo isto? Muitas coisas:
-que as teologias são metafóricas e não narrativas históricas, nem tampouco descrições metafísicas;
-que as teologias são muitas, variadas, não somente uma... e que quando adotamos uma delas não devemos nunca perder de vista que se trata apenas de «uma» teologia, não «da» teologia;
-que as teologias são contingentes, não necessárias;
-que são elaborações humanas, não revelações divinas descidas do céu, e que estão construídas com elementos culturais da sociedade na qual foram concebidas;
-que são também transitórias, não eternas, e que com o tempo e as mudanças culturais perdem plausibilidade e até inteligibilidade, e que podem acabar resultando inaceitáveis e até descartáveis;
-que os agentes de pastoral que atendem ao Povo de Deus devem estar atentos para não prolongar a vida de uma teologia ultrapassada, superada, que já não fala de um modo adequado às pessoas de hoje;
-que podem e devem tentar encontrar novas imagens, novos símbolos, novas respostas interpretativas de parte da nossa geração atual às perguntas de sempre.
Concluímos: a Semana Santa é uma ocasião privilegiada para abordarmos a necessidade da revisão de nossos esquemas teológicos fundamentais e da urgência de abrir-nos a novas linguagens.
Oração
Ó Mistério infinito, que, de muitas maneiras e de uma forma constante ao longo da História, fizestes surgir novos Messias para ir ao encontro das esperanças da Humanidade de todos os tempos e de todas as religiões, especialmente ao encontro das esperanças dos pobres. Fazei que aqueles que nos sentimos iluminados por Jesus, admiremos consequentemente seu espírito messiânico de serviço e de luta esperançada, para que fugindo de toda imposição ou arrogância, e de toda alienação ou resignação, ponhamos sempre no centro, e acima de tudo, como ele, a esperança de um “novo céu e uma terra onde more a justiça”. É o que queremos vos expressar com a esperança mesma de todas as pessoas e povos continuam hoje precisando e esperando um messias salvador. Inspirados por Jesus, vo-lo pedimos, vós que viveis e fazeis viver, em plenitude, pelos séculos dos séculos.
Santo do Dia
S. Antônio Neyrot
séc. XVI ? dominicano ? \"Antônio? quer dizer \"aquele que está à frente, na vanguarda?, \"pioneiro?
Antônio Neyrot nasceu em Rívoli, Itália, por volta de 1420. Era dominicano e contemporâneo de Fra Angélico. Em 1450, foi para Sicília, dali para Nápoles, onde acabou sendo preso por piratas e levado para Tunes. Abraçou o islamismo e se casou. Por volta de 1450, retratou-se publicamente e retornou à fé católica. A multidão enfurecida massacrou-o e expuseram seu corpo à irrisão pública. Foi canonizado pelo papa Clemente XIII, em 1767.